Flavio Cruz

Saudades da Cecília  


A Cecília fazia uma falta que não dava nem para imaginar. O Mateus, desolado, tentava conviver com a dor. Cinco anos já haviam se passado desde que ela tinha falecido e ele ainda sentia aquela facada no peito como se fosse hoje. Muita gente pensa que dor de saudade é uma dor psicológica, que dói na cabeça. Que nada, é uma coisa forte no peito, parece que está rasgando tudo por dentro.
Para enganar a si mesmo, o Mateus fazia, todo dia, aquela pequena cerimônia. Arrastava a cadeira para perto da cama, pendurava uma blusa da Cecília sobre o encosto e uma saia ele estendia sobre o assento. Era assim mesmo que ela fazia antes de seu banho. Depois se enxugava e começava a se vestir para o trabalho. Não mais, mas pelo menos ele imaginava. Pelo menos assim, ele tinha aquela sensação de que ela estava ali. Era uma bobagem, mas fazia um bem danado, igual a cera analgésica que você põe no buraco do dente que está latejando. Mais tarde, quando vinha do trabalho, trocava aquelas peças de roupa pelo pijama dela. E dormia. Às vezes sonhava, às vezes não. Nunca tiveram filhos, só ele e ela. Agora, ele, sozinho, curtia aquela solidão maluca.
Chegou uma época em que ele resolveu ir até uma psicóloga. Queria ter certeza de que não estava louco, de que aquilo podia até ser uma coisa normal. Ela disse que normal não era, mas não chegava a ser loucura. Seria bom, entretanto, ir se livrando desse hábito, pois não era muito saudável. Ao invés disso, deveria começar a frequentar outros ambientes, tentar fazer amizades com outras mulheres... Quem sabe? Ele até tentou, mas não achava graça em ninguém e aquele procurar acabou ficando penoso para ele. Ele conseguiu, entretanto, não fazer a cerimônia das roupas todos os dias. Agora, só de vez em quando. A psicóloga orientou, então, que ele tentasse, num desses dias em que ele estava melhor, fazer uma coisa definitiva. Juntar todas as saias, vestidos, tudo da Cecília, colocar numa mala e dar para uma instituição de caridade.
Naquele domingo, ele criou coragem. Colocou tudo em duas malas e as deixou no canto do quarto. Noutro dia, levaria as coisas para o Exército da Salvação. Dormiu relaxado, pensando que estava começando ali uma nova fase de sua vida. No dia seguinte, pensou em colocar as malas no carro e ir direto para o lugar onde iria deixá-las. Estava atrasado, porém, e resolveu fazê-lo na volta.  O Exército da Salvação era ali perto, não haveria problema.
Teve um dia normal, não pensou muito sobre o assunto. Conseguiu até sair um pouco mais cedo, assim daria para ir até lá enquanto estivesse aberto. Nem guardou o carro, deixou-o estacionado em frente à casa. Tomou um copo de água na cozinha e dirigiu-se até o quarto. Quando abriu a porta, suas pernas começaram a tremer. Lá estavam a blusa e a saia preferidas dela estendidas sobre a cadeira. Do mesmo jeito que ela fazia, do mesmo jeito que ele fazia. Sobre a cama, as malas desfeitas e todas as peças de volta no lugar. Mateus sentiu uma tontura e sentou-se no chão. Ninguém tinha a chave casa, ninguém sabia da história.
Diante desses fatos, ele resolveu recomeçar o seu ritual, não mais falou com a psicóloga e continuou assim até a época da aposentadoria. Afinal, eles tinham combinado de se aposentar juntos. Obviamente, então, ela não precisaria das roupas para trabalhar.
Assim é que as coisas aconteceram. A psicóloga tinha aconselhado, o Mateus tinha seguido as normas. Só esqueceram de avisar a Cecília de que iam parar com a “cerimônia”. Aparentemente ela tinha gostado da primeira ideia do viúvo marido, também tinha saudades de sua vidinha por aqui. Gostava de ter aquela impressão de que estava tudo normal, de que tinha de ir trabalhar todos os dias.
A opinião da mulher é sempre importante, mesmo porque, no final, é sempre ela quem decide... nem que esteja do outro lado.

 
 
 
 
 

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Published on e-Stories.org on 08/28/2016.

 
 

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