Flavio Cruz

A lenda dos sete beijos


Essa história é da época em que as pessoas ainda viviam em aldeias. Sagar e Rolando eram dois irmãos que moravam com os pais. Eles ainda eram muito jovens quando o pai morreu de uma doença que estava se alastrando por toda a localidade. A mãe o seguiu duas semanas mais tarde. O mais velho, Sagar, foi morar com parentes a alguns quilômetros dali e o mais novo ficou com um velho amigo da família. A vida continuou com muita dificuldade, mas continuou.
Alguns anos se passaram e os irmãos poucos se viam. Sagar, um dia, recebeu a triste notícia. O irmão, Rolando, havia morrido, envenenado. Pegou suas coisas e partiu, desesperado, para tentar entender o que havia acontecido. Lá chegando, falou com um ancião, uma espécie de líder da população, pois o amigo que acolhera o irmão, também havia morrido há um bom tempo atrás. Explicou-lhe que o corpo tinha sido enterrado, pois não podiam ter esperado. Mas tinha sido envenenamento, era certeza.
Havia na aldeia sete irmãs que viviam com a mãe e, ele tinha convicção de que tinha sido uma delas. Eram muito parecidas, pouca gente sabia distingui-las. Se ele quisesse mesmo descobrir qual delas tinha envenenado o irmão, seria permitido que tentasse. Beijaria as sete, uma a uma. Que tentasse, através do beijo, descobrir a assassina.
Sagar achou a ideia estranha e estúpida, mas ninguém podia contestar o ancião, e, por isso, ele aceitou.
Foi advertido que, após beijá-las todas, ele teria três chances de apontar a mulher que tinha envenenado Rolando. Depois disso, se não acertasse, nada mais poderia ser feito. O crime seria esquecido para sempre.
No dia seguinte, na casa do ancião, lá estavam as sete e Sagar. O ancião apontou para Isabela, a mais velha, e ordenou que fosse no cômodo ao lado, para ser beijada por Sagar. E assim foi feito. Ele deu-lhe um longo beijo. Seus lábios eram frios, quase gelados. Ela ficou como uma estátua, não se mexeu. Era como se Sagar tivesse beijado um bloco de gelo. Veio a segunda, Adriana, e ela foi beijada também. Ela correspondeu ao beijo, porém com pouco entusiasmo. Seus lábios tinham gosto de canela. Suaves, porém. A terceira era Sabrina. E ela tinha um beijo quente, gostoso, cheio de volúpia. Mas certamente era só volúpia, não havia carinho ou amor. A quarta, Celeste, tinha lábios suaves, meigos, quase de criança. E ela tremia. Saiu rápido, sem olhar para trás. A quinta era Adelina, parecia estar dando um beijo de amor, só de amor. Não havia volúpia, nem paixão. Carinho, isso havia sim. Estranha sensação para Sagar, que procurava a assassina do irmão. Alícia era a sexta e ela tinha fel nos lábios. Um beijo amargo, que Sagar mal aguentou. Empurrou-a rapidamente para longe de si. Finalmente entrou Mistag. Linda, com um vestido vermelho, um decote indiscreto e um véu branco sobre o rosto. Foi ela quem procurou Sagar. Deu-lhe um longo beijo, cheio de paixão e amor. Parecia amor sincero e paixão profunda. Uma volúpia que Sagar jamais tinha sentido.
Quando Sagar voltou para a sala, o ancião lhe perguntou quem era, para ele, a mulher maligna que havia colocado veneno no vinho de Rolando. Sagar não teve dúvidas e logo apontou Alícia, a que tinha fel nos lábios. O ancião riu de Sagar e disse que ele era ingênuo. Avisou que tinha mais duas chances. Dessa vez, ele pensou um pouco. Não muito, porém. Estava claro que o beijo gelado de Isabela era quase uma confissão. Riu de novo o ancião e disse que essa era sua última chance. Depois disso, ele teria que ficar para sempre, com uma dúvida sobre as quatro restantes. Sagar pensou e pensou. Deduziu que a volúpia sem amor era uma atitude suspeita. Por isso acusou Sabrina. Certamente tinha iludido Rolando com sua volúpia. Talvez tivesse enchido sua taça com vinho e veneno. Tinha praticamente certeza de que essa era a resposta e assim expressou a sua decisão para o ancião. Esse balançou sua cabeça negativamente dizendo: “Agora nunca saberás.” E todos saíram da casa. O ancião ficou lá fora, enquanto as mulheres, em fila, voltavam para seu lar, conversando, alegres. Sagar estava muito triste. Sentiu que tinha falhado com seu irmão. Abaixou a cabeça e começou a caminhar.
Mal tinha dobrado a primeira curva, quando alguém o chamou. Nada mais do que Mistag, aquela do prazer e do amor. Disse que queria ajudá-lo, que conhecia um lugar. Entraram por uns becos até chegar numa casa de madeira. Entraram. A mesa da sala estava arrumada, como se estivessem esperando alguém. O coração de Sagar palpitava de prazer. Mistag era ainda mais voluptuosa do que ele pensava. Ela disse que sabia quem era a assassina e que lhe contaria. Sentaram-se junto à mesa. Ela abriu um armário e pegou duas taças e uma botelha de vinho. Um vinho vermelho como sangue e como os lábios de Mistag. Havia uma mistura de curiosidade em saber quem era a assassina e um desejo pelo corpo de Mistag. E ele não sabia o que era mais forte. Não conseguia pensar em mais nada enquanto Mistag derramava o vinho em sua taça. Brindaram e começaram a beber. E enquanto brindavam, ela disse: “À verdade”!  O vinho era muito forte e num instante a cabeça de Sagar estava rodopiando. Ela pegou-o pela mão e caminharam até um leito, num quarto da casa. E ele deitou-se e podia ver os lábios cheios de prazer de Mistag. E parecia que ele estava ouvindo coisas. Ou ela, talvez, ela estivesse mesmo falando. Meu nome é Mistag e “mistag” em sueco significa “engano”. E depois, ela ria. Depois ela falou “in vinu veritas”, e isso ele sabia, queria dizer “no vinho, a verdade”. Aquilo era motivo de se preocupar, mas ele estava tão sequioso do corpo de Mistag, que não quis entender. Ela se abaixou e lhe deu um beijo. E esse beijo era uma mistura de volúpia, de fel e de gelo. Ele estremeceu de medo e de prazer também. Ela parecia estar se despindo agora, mas ele não tinha certeza, sua cabeça estava rodopiando. Foi aí que ele ouviu uma frase estranha que ela falou. Ela perguntou e respondeu ao mesmo tempo. Sabe o que mais há no vinho, além da verdade? Existe um pó mágico. O mesmo pó mágico que Rolando, seu irmão tomou. Dessa mesma taça que você bebeu. Não fique triste por ele, ele escondia algo de você. O ouro que seus pais tinham deixado. Ele recebeu o que merecia. O ouro é nosso agora, já que daqui a pouco você também vai partir. Minha mãe é minha mãe, mas meu pai ninguém sabe, é o ancião. Ele é sábio, ele nos ensinou. Agora, você pode descansar. Nós temos muito o que fazer.
Sagar não sabia o que era sonho, o que era bebedeira, ou o que era verdade. Nem importava, agora o veneno já estava em seu sangue, sua respiração estava difícil. Em alguns minutos ele iria morrer.
Mistag fechou a porta da casa e foi se encontrar com o ancião, seu pai. Agora tudo estava completo, tinham um tesouro nas mãos e testemunha nenhuma. Consciência eles também não tinham. Se tivessem, pertenceria ao demo, de qualquer jeito.
Quando ouvi esta narrativa, fiquei torcendo para ser apenas uma história. Uma coisa inventada. Se é ou não, eu não sei. Eu sou apenas um contador de histórias. Nem o significado dela, eu sei.
 

 

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Published on e-Stories.org on 07/07/2016.

 
 

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