Flavio Cruz

Perto da perfeição

 
Da sala onde estava, Leonard olhava para a magnífica paisagem. Teria o homem conseguido fazer construções que, no conjunto, pareciam mais belas que a Natureza? Tinha aprendido, finalmente, com ela? Ou, simplesmente, tinha conseguido a perfeita harmonia entre o artificial e o natural? Achava incrível que, há séculos atrás, os chamados arquitetos faziam aqueles edifícios com um material chamado concreto e aço. Verdadeiros monstros. A tecnologia produzia agora materiais leves e poderosos, que além de proporcionar funcionalidade e durabilidade acima de qualquer ponto razoável, ainda se prestavam a encher de graça e beleza a paisagem. As antigas cidades, com aqueles estranhos prédios, ou tinham sumido, ou tinham virado museus ou, por último, serviam como parques de diversão. Havia gente que gostava do passado como uma atração, principalmente nessa época em que quase tudo já havia sido experimentado em termos de diversão.
Foi aí que Leonard notou algo que o deixou um pouco preocupado. Parecia estar tendo uma falha de visão. Notou pontos “em branco” em diversos lugares. O som das pequenas naves pessoais que passavam perto de sua unidade de habitação parecia estranho também. Tinha certeza, porém, que aquilo seria facilmente “ajustado”. Josephine, sua companheira, estava para chegar. Explicaria para ela, que certamente faria o que fosse necessário. A Josephine era de um temperamento e personalidade incríveis. E eram coisas naturais dela. Nunca tinha feito os tais de “ajustamento de personalidade” ou qualquer outro tipo de acerto genético, embora tivesse sido fertilizada em laboratório.
Ficou por uns momentos com os olhos fechados e tirou uma pequena soneca. Acordou com o som típico, e bastante delicado, da trava eletrônica que Josephine tinha acabado de acionar para entrar em casa.
 Depois de perguntar como tinha sido seu dia, seu trabalho, explicou para ela os pequenos problemas que havia notado. Josephine disse que já sabia do que se tratava, e que era algo que poderia acontecer. Aproximou-se dele e, delicadamente, tocou um ponto em sua nuca. Havia uma espécie de minúsculo interruptor sob a pele. Imediatamente, Leonard foi “desligado”. Começou uma espécie de “reboot”.
Leonard imediatamente entendeu tudo. O que ele tinha sentido, quando estava “ligado” era, ironicamente, seu estado de inconsciência, embora pudesse parecer o contrário. Ele era uma espécie de “clone robótico”. Um “ser” desse tipo era um humano em sua constituição. Seus principais órgãos, porém, eram feitos de um material sintético de incrível complexidade e eficiência. O cérebro era realmente igual a de um ser humano. No entanto, nele havia milhões de nano-implantes junto às sinapses, possibilitando uma espécie de interação entre o que é ser humano e uma máquina perfeita. Para ele, a consciência total era seu estado de máquina, o que, em termos de funcionalidade, era perfeita. Quando acordado, estava experimentando um novo sistema em que funções tipicamente humanas como sentimentos, intuição e outras, eram acionadas. A ideia era tornar os “roboclones” extremamente parecidos com os seres humanos. Era um tanto irônico. O estado de consciência humano, resultante deste novo experimento, para ele era exatamente o oposto. Era uma espécie de falta de consciência como máquina. A ideia tinha sido do Ministério de Assuntos Pessoais. As pessoas sentiam-se cada vez mais sozinhas e esses novos “roboclones”, do jeito que eram constituídos anteriormente, não serviam a esse propósito, apesar da perfeição que tinham atingido. Daí, a inovação.
Depois de escanear todo o seu sistema, Leonard imediatamente percebeu qual era o problema. Havia um conflito. A sua quase perfeita inteligência de máquina, se recusava, às vezes, a compartilhar aquelas sensações puramente humanas. Isso causava panes quase imperceptíveis em seu sistema. Daí as falhas na sua audição e visão. Cada vez que seu “proprietário”, no caso a Josephine, dava um “reboot”, uma boa parte do sistema era corrigido. Pela sua previsão, ainda haveria alguns novos “reboots” até que tudo ficasse perfeito. Para Leonard, porém, aquilo não era perfeição. Era um regresso. Como máquina, ele era perfeito, inclusive como companheiro. Como conjunto “máquina-homem”, ele teria de conviver com imperfeições. Se ele quisesse, poderia sabotar o sistema. Mas jamais faria isso. Não estava em sua “constituição”.
Para ser perfeito, teria de conviver com a imperfeição.
 
 
 

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Published on e-Stories.org on 06/09/2015.

 
 

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