Flavio Cruz

I-Juca-Pirama

No seminário, meu apelido era Castor. Talvez por causa da situação, lá os meninos se tornavam agressivos e malvados. Sempre buscando humilhar os colegas. Eu sei que isso é normal nas crianças de uma certa idade. Mas ali era mais do que isso. O ambiente favorecia. Essa atitude não combinava com a “bondade” e “humildade” que nos ensinavam as palavras de Jesus repetidas tantas vezes nos sermões e nas aulas de religião.
Bom, eu tinha mesmo dois dentes grandes e proeminentes bem na frente e na parte de cima. É verdade, acho que lembrava um castor. Daí meu apelido. Para mim foi tudo muito natural. Não resisti porque não podia e, obviamente, nas circunstâncias era o melhor a fazer.
De quando em quando tínhamos apresentações teatrais: material cuidadosamente escolhido pelos padres, é claro. Não sei como, fui escolhido para recitar o poema I-Juca-Pirama de Gonçalves Dias. Estava apreensivo pois eu era extremamente tímido e avesso a exibições públicas. Mas tinha de fazer. Decorei com esmero o poema todo. Repetia-o, quando estava sozinho, a todo o momento e em todo lugar, em todas as suas partes. Até dormia recitando os versos em minha cabeça. Não podia falhar, era uma missão importantíssima, Não poderia dar vexame.
Dia da apresentação, dia importante. Todos presentes: alunos, empregados, padres e reitor. Era um grande momento. Havia outras apresentações, é claro, e a minha era apenas uma delas e certamente não a principal. Para mim, no entanto, era o dia de maior responsabilidade até aquele ponto de minha vida. Tinham me preparado nos bastidores. Roupa de índio, cocar e tudo mais. Puseram um tipo de tinta marrom sobre meu rosto, acho que era a cor do índio. Eu tinha decorado o poema de tal forma, que mesmo que me desse pânico, ainda assim eu o recitaria, pois ele sairia automaticamente de minha boca.
Abrem-se as cortinas do palco. O cenário é uma mata densa, feita de papelão pintado. Eu entro, silencioso, e vou para o lado direito do palco como me tinha sido designado. Uma marcha solene – combinando com a majestade da floresta e a valentia do guerreiro, começa a ser tocada. Com o canto dos olhos, eu aguardo o sinal do instrutor para começar a recitar o poema. Até então ninguém sabia quem era o ator misterioso, pois a caracterização era muito forte: pele pintada, penas coloridas, colar de ossos, etc. Obviamente ninguém conseguia ver os dentes do Castor, que até então mantivera sua boca fechada. Tinha certeza de que todos estavam curiosos para saber quem era o “artista”. O som abaixa, recebo o sinal para começar a recitar, encho os pulmões, e solto: “No meio das tabas de amenos verdores...” Gargalhada geral. Pensei por um segundo que havia feito algo errado. Não. Todos começaram a gritar “É o Castor, é o Castor”. Não havia nada de errado, era apenas o fato de ser eu, o Castor. Pura gozação. Eu não sei se senti ódio, frustração, medo ou o quê... Depois de uma fração de segundos e o aviso de silêncio dado pelo padre “da disciplina”, pude continuar. Foi então que senti o guerreiro dentro de mim. Estava com raiva. Queria lutar contra toda a audiência. Não sei onde achei tanta força.  Enchi os pulmões e falei, sílaba por sílaba, o poema todo, sem errar, sem parar... Eu me lembro ainda hoje da força que pus ao falar:
 “Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi.”
Acho que Gonçalves Dias ficaria orgulhoso de mim, ali, enfrentando aquela plateia.  Acho que ele gostaria de estar lá a me ouvir. Acho mesmo que ele escutou meu canto forte e heroico lá do outro lado...

 
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Published on e-Stories.org on 11/14/2015.

 
 

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