Flavio Cruz
Os diferentes
No começo foram só alguns casos isolados, ou pelo menos era o que parecia. Algumas pessoas, repentinamente, se “desligavam”. Passavam a agir como se fossem robôs. Na verdade, elas continuavam fazendo tudo que faziam antes, até coisas íntimas e pessoais, mas, lá no fundo, pareciam ter perdido a alma, o espírito. Podia ser um irmão, uma esposa, um marido, um amigo, um vizinho. Assim, do nada, de repente.
Não demorou muito para ficarmos sabendo que o fenômeno não era local. Estava acontecendo no mundo todo. Cientistas e médicos começaram a fazer estudos, exames, análises. Nada. Nada de objetivo, pelo menos. Tudo parecia normal. Para quem conhecia essas pessoas, porém, era como se elas tivessem perdido a alma. Havia debates na televisão, artigos nos jornais e em revistas e blogs. Todos estavam falando do assunto. Embora os religiosos obviamente falassem sobre isso também, havia um certo cuidado em “demonizar” o assunto, pois ninguém sabia quem seria o próximo. Poderia ser o próprio pastor, ou o padre ou ainda alguém muito próximo.
Com o tempo, as coisas foram se acalmando, porém. O povo acaba se acostumando com tudo. A certa altura verificou-se que não estavam ocorrendo casos novos. Ninguém, porém, “voltava” daquele estado. Parecia uma coisa definitiva. Muitos começaram a falar em “arrebatamento”, embora, tecnicamente aquilo não tinha as características do mesmo. O ser humano precisa de explicações e, quando não acha, começa a ficar criativo.
Logo depois que se encerraram novos casos, muitos governos apareceram com estatísticas. Cerca de 13.3% da população tinha sido afetada pela “doença” e ironicamente, ficou oficial algo que a maior parte das pessoas já tinha percebido. Os “diferentes”- eram assim chamados pelo mundo afora – não morriam. Pelo menos até agora, nenhum tinha. Estatisticamente isso seria impossível.
Quando ficou claro que a imortalidade - pelo menos até então – era um fato, começaram a aparecer inúmeras explicações místicas ou pseudocientíficas. Alguns afirmavam que os “diferentes”, na verdade, tinham tido suas mentes “raptadas” por de seres de galáxias distantes.
Tudo isso, entretanto, não durou muito tempo. Algo novo e extraordinário ocorreu. Os “diferentes” começaram a desaparecer. Seus corpos, no entanto, nunca eram achados. Antes, porém, que aparecessem boatos de extermínio, de assassinatos, ou coisas do tipo, ficou claro o que estava acontecendo. Mas isso também não esclarecia muita coisa. Os diferentes estava se juntando em lugares específicos. Saíram de suas casas e começaram a viver em áreas isoladas, não muito longe de suas cidades, de suas comunidades. Eram tão determinados que ninguém ousava ir atrás deles para convencê-los a voltar. Não sobrou um diferente sequer que tivesse ficado com a família. Todos, sem exceção, estavam, em alguma comunidade isolada, perto de suas cidades, pelo mundo afora. Não se preocupavam com comida, com nada. Foi por muito pouco tempo, porém. Um dia, no mesmo horário, em todo o mundo, uma névoa branca, luminosa, envolveu a todos, e, alguns segundos depois, todos os diferentes, sem exceção, haviam desaparecido.
Havia uma mistura de tristeza, de alívio, de sabe-se lá o quê! Arrebatamento? Uma raça mais avançada, com remotas e desconhecidas máquinas, tinha levado embora uma quantidade inusitada de espécimes humanos para estudo?
O povo precisava continuar vivendo e, mesmo diante de tão inéditos e estranhos fatos, a rotina continuou. O que quase ninguém percebia é que todos os fatos relacionados com a vida dos “diferentes” começaram a sumir da lembrança das pessoas, tanto quanto suas próprias imagens. Desta forma, processava-se uma espécie de novo passado, se é que tal coisa possa existir. Não se sabe se havia relação com isso, mas muita coisa mudou na paisagem e até algumas na geografia. Algumas casas e prédios desapareceram e outros surgiram. Era como se uma nova realidade, que se adaptava aos que ficaram, tivesse se formado. Havia no ar uma mistura de surpresa e de tristeza. Foi então que alguns governos informaram que a grande névoa que tinha coberto tudo na época do desparecimento dos diferentes, na verdade tinha coberto apenas os que ficaram. Os diferentes foram para lugares onde a grande luz branca não tinha alcançado. Isso queria dizer que, quem tinha sumido não eram os diferentes, éramos nós. Em outras palavras, os “diferentes” éramos nós. Fazia sentido, nosso mundo praticamente não existia mais, tanto ele tinha mudado. Os diferentes é que tinham restado e ficado para repovoar a terra. Nós estávamos em algum lugar diferente. Num outro universo, talvez? Alguns falavam até em realidade virtual.
Para ser sincero, agora quase ninguém discute mais isso. Eu ainda falo um pouco sobre o assunto e conheço uns outros poucos que também o fazem. A grande maioria não tem a menor ideia, não se lembra de nada. Para eles o mundo sempre foi assim, nunca houve os diferentes. Essa história de “diferentes” é coisa de gente louca. Alguns loucos que existem por aí. Loucos como eu.
Ultimamente tenho pensado a mesma coisa. Que talvez nunca tenha havido os diferentes, que talvez a maioria das pessoas tenha razão. Aos poucos eu vou me convencendo de que foi tudo uma ilusão. Talvez seja melhor assim, talvez eu finalmente tenha um pouco de paz.
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Published on e-Stories.org on 09/24/2016.